Envolto neste ambiente de início de aulas, o Diário de Fictícias decidiu ajudar todos aqueles caloiros (coitados) que têm de fazer figuras menos próprias para obter um lugar de prestígio (?) por entre a comunidade estudante de Coimbra.
Desde percorrer as ruas da cidade cantando músicas do Quim Barreiros, a fazer declarações de amor às lindas donzelas, os aprendizes vivem momentos de eterna memória…
Uma vez que o Diário de Fictícias tem o nome de um caderno que guarda recordações, é, assim, o jornal indicado para ajudar esse pequeno passarinho a voar pelo céu de Coimbra!
Caloiro, podes rasgar esta parte do jornal e levá-la contigo no bolso sempre que fores chamado a declarar o teu amor à doutora:
Sentado espero inspiração
Para aquilo que vou dizer
E coloco os olhos no chão
Porque acabei de beber.
Não tenho lábia suficiente
Para ir ao “Levanta-te e Ri”
Mas espero que fique contente
Com aquilo que lhe escrevi.
Quando cheguei à cidade
Fiquei muito admirado
Pois notei que na Universidade
Ou se praxa ou se é praxado.
Não é uma questão de valor
Ou sequer de ambição
Desde que traje a rigor
O resto vem por arrastão.
Mas já me estou a desviar
Do que lhe quero transmitir
Tenho que me declarar
E não me posso distrair.
És a sereia no meu jardim
A água que passa no Mondego
A história que começa pelo fim
Os lábios que sussurram um segredo.
Gostava de ficar mais tempo
Mais uns minutos, mais uma hora
Mas palavras, leva-as o vento
E com ele me vou embora.
André Pereira
Estamos numa manhã de Setembro. As t-shirts e os calções reflectem a temperatura que se tem verificado durante este Verão e as buzinas dos automóveis confirmam a chegada de um novo período de trabalho.
As letras mantêm-se as mesmas e a sua disposição vai sendo alterada conforme a altura do dia. Tudo se encontra no seu local habitual, à excepção de um novo vizinho que chama a atenção de todos os outros…
Diário de Fictícias – Está um belo dia de sol… (diz, olhando pela vidraça). Assim, até apetece ser vendido e andar por aí a passear…
Novo Vizinho – Bom dia! Por acaso está um dia bem agradável. E parece que vai continuar assim solarengo durante uns bons tempos…
DF – Pois, espero que sim… Mas, agora que estou a olhar para si, não o conheço, pois não? Não me recordo da sua cara, desculpe, da sua capa…
Novo Vizinho – Pois não, eu sou novo aqui na papelaria. Cheguei hoje de manhã e arranjaram-me aqui este cantinho. Mas sinto-me muito cansado, a viagem foi longa e um pouco atribulada… Acho que ainda vou fechar os olhos antes de a porta abrir…
DF – Olhe que a papelaria entretanto abre. Talvez não valha a pena adormecer agora… Descansa logo à tarde, já que a viagem foi assim tão difícil…
Novo Vizinho – Epá, não me diga isso. E eu que pensava que ia ter agora um tempinho para descansar. Sabe, vim de Lisboa, da capital, e, como tenho o carro avariado e o comboio é muito caro, decidi vir de autocarro expresso. A viagem não foi assim tão má, até vimos alguns filmes, contudo, a saída foi o que me custou mais, tropecei e ia caindo. Mas, felizmente, cheguei ao destino e agora é só trabalhar para ver se as coisas me correm bem.
DF – Decerto que irão correr. Sabe, o local onde se encontra foi, durante muitos anos, de um jornal muito independente. Fazia tudo sozinho, e raramente pedia alguma coisa emprestada. Quando chegou, a dona da papelaria entregou-lhe a chefia de todas as portas. Era um jornal muito acessível e com um sentido de humor único. Há dias, pediu a reforma e colocou um ponto final na sua carreira.
Novo Vizinho – Sinto-me lisonjeado por estar neste lugar, tenho uma visão global da sala. Já reparei que tenho público a assistir sempre que queira discursar, tal e qual eu imaginava. De manhã entregam-me em mão o correio, à tarde faço um jogo de futebol, pego na bola e bato o record de golos do Eusébio! Tudo isto em 24 horas! Pena é só poder fazê-lo uma vez por semana… Já agora, a que horas é o despertar?
DF – Há um despertar semanal, às sextas-feiras, no início da manhã. Mas é só aqui na zona de Coimbra. Aproveito, então, para lhe apresentar outros dos seus colegas. À sua frente tem um jornal muito poupadinho, que só vê números à frente, chamamos-lhe o “económico”, está cá diariamente. À sua direita tem dois irmãos que só falam de notícias, o Jornal e o Diário. Lá ao fundo, na porta 666, mora um cujo nome nem me atrevo a dizer… Aquela zona é uma zona de muita criminalidade, como se pode ver pelo jornal ao lado. Depois, temos deste lado esquerdo a zona das revistas, a maioria cor-de-rosa.
Novo Vizinho – Sim senhor, fiquei esclarecido em relação à minha vizinhança. Agora, só com o tempo é que se verá. Espero que daqui a três anos já esteja mais habituado a estas andanças e consiga dinheiro, pelo menos, para vir de táxi, já estou um bocadinho farto de andar de expresso.
DF – Olhe, as portas abriram-se. Vai começar o dia. Curioso, estamos aqui a falar há tanto tempo, e nem sequer sei o seu nome…
Novo Vizinho – Nasço todos os dias sem nunca ter morrido, tenho uma clave só para mim, e, apesar de ser novo neste mundo sempre fui a estrela mais brilhante! Consegue adivinhar?
André Pereira
Diário de Fictícias – Sr. Galo? Sr. Galo?
Galo – Quem me chama? (olhando para todos os lados). Ah, é você! O que faz aí em baixo? O que quer de mim?
DF – Gostava de lhe colocar umas questões sobre a sua vida aqui nesta capoeira…
Galo – Não percebi muito bem o que disse. Vai ter que falar um pouco mais alto, sabe, tenho alguns problemas de audição…
DF – Assim seja. Nestas últimas semanas, tem estado nas primeiras páginas dos jornais. Tudo devido a uns problemas de um dos seus súbditos. Qual a sua opinião em relação a isso?
Galo – Todos falam de mim e da minha capoeira, contudo nada de extraordinário se passou nestes últimos dias. Em relação ao problema de que fala, não é da minha responsabilidade mas sim da responsabilidade do meu patrão.
DF – Já o seu patrão diz o contrário, que a culpa é inteiramente sua. Diz que, como galo que é, não pode querer voar…
Galo – Ninguém me diz o que devo ou não fazer! Já subi até ao cimo do telhado e hei-de subir ainda mais. Muitos velhos do Restelo não me auguram um bom futuro e outros galos da zona norte invejam a minha posição. E irei recorrer ao Supremo Tribunal de Justiça Galinácea provando, assim, que eu mereço voar.
DF – Se cumprir o que está a prometer, pode prejudicar todas as outras capoeiras do país. Os seus homónimos pelo país fora podem perder o direito a emigrar, reduzindo, assim, a importação de milho.
Galo – Isso não são contas do meu rosário. Os outros animais têm que saber que eu quero, posso e mando! Aliás, sou o único galo transformado em louça vendido por todo o país. E isso não é para qualquer um.
DF – Sim, é verdade. Mas isso não lhe dá razão para fazer o que quer. Todos temos que respeitar e ser respeitados.
Galo – Aí é que está a questão. Ainda há dias fui a Lisboa para passear e fecharam-me a porta na cara. O meu patrão é um homem duro e autoritário que põe os seus interesses à frente dos da sua profissão. As outras capoeiras pretendem que eu desista de lutar pelo meu objectivo… Estes problemas estão a complicar em muito a minha vida… Estou numa autêntica barca do inferno.
DF – Para terminar, como encara o seu futuro a nível pessoal e profissional?
Galo – Bem, a nível pessoal espero continuar a cantar à meia-noite e de manhã cedo, que é o que eu mais gosto de fazer. A nível profissional, continuarei a cantar de galo por todas as capoeiras deste país!
André Pereira
Diário de Fictícias – Mesmo à hora marcada, senhor Relógio. Há muito tempo que não tinha um entrevistado tão pontual.
Relógio – Pois, calculo. Eu chego sempre a horas. Aliás, é o que eu faço para viver.
DF – Esta ideia de o entrevistar já tem uns anitos, mas não me tem sido possível contactá-lo, não tenho tido tempo para nada… São muitos os assuntos a resolver e, por vezes, nem dou conta do passar das horas… Bem, já se está a ficar tarde, e eu para aqui a falar. Já agora, que horas são?
Relógio – Olhe, se continuar a falar dessa maneira, são horas de ir para a cama… Mas eu vim para uma entrevista, e o tempo vai passando. Estamos mesmo em cima da hora!
DF – Peço imensas desculpas, não voltará a acontecer. Senhor Relógio, a sua vida tem sido pautada pelo rigor e disciplina. Nunca desejou sair dessa rotina diária, adquirindo, dessa forma, uma maior liberdade?
Relógio – Sim, é verdade. Sempre tive uma vida regrada, não sei viver de outra forma. Por outro lado, já tive as minhas recaídas e pensei em desistir de andar às voltas mas tenho três verdadeiros amigos muito importantes para mim: o ponteiro dos segundos (o irmão mais novo), o ponteiro dos minutos (o irmão do meio) e o ponteiro das horas (o irmão mais velho).
DF – Espero que nunca desista, porque sem si as coisas seriam bem mais desorganizadas que agora. E olhe que neste momento, o mundo não é propriamente um Paraíso. Por falar no Éden, qual é o seu país de eleição para trabalhar?
Relógio – Adoro a Suíça, o meu país de eleição. Também gosto muito de Inglaterra, um país fantástico para mim. Aliás, o meu irmão Big Ben tem residência fixa em Londres. Lá, o tempo pode não ser o melhor mas o meu verdadeiro tempo é excelente, se é que me faço entender... Gosto, essencialmente, de viajar pelos países do norte da Europa, bem como por outros países dos restantes continentes.
DF – Qual a opinião que tem sobre Portugal?
Relógio – Desculpe, não percebi bem a pergunta… Qual a opinião que tenho sobre quê? Sobre Portugal? Não conheço esse país… Pode ser pura ignorância mas nunca o visitei nem sequer ouvi falar dele…
DF – Sabe (atrapalhado), eu sou um jornal de Portugal… Pode não parecer, mas esse pequeno rectângulo “à beira-mar plantado” é um país… Um grande país, com uma enorme tradição e reconhecida glória pelo mundo fora…
Relógio – Ah sim… Portugal, não me lembrava de ter estudado esse País na escola, mas agora estou a recordar-me. Nunca o visitei, e pouco dos meus familiares visitaram mas acredito que seja um belíssimo local para viver…
DF – O senhor referiu os seus tempos de escola. Qual era a sua disciplina preferida?
Relógio – Sempre fui um bom aluno, especialmente a matemática. Contudo, chegava uma altura em que eu não conseguia raciocinar mais e os números faziam-me andar à roda… Mas orgulho-me de nunca ter faltado às aulas e de, acima de tudo, ser muito pontual.
DF – Pontualidade é uma característica muito apreciada por si mas também pelo meu estômago, que já está a dar horas… Mas ainda tenho umas perguntas para lhe colocar… Há quem diga que, para o usar, é preciso ter pulso…
Relógio – Não é essencial, mas actualmente é aconselhável. Contudo, nestes últimos anos tenho-me sentido muito bem nas paredes de sala e nas torres mais altas das cidades. Também já andei muito nos bolsos dos mais ricos, e passei grandes aventuras na areia e na água… O sol é o meu companheiro mais antigo, acabando por ser o meu próprio relógio biológico.
DF – Foi muito agradável ter falado consigo, mas o tempo passou a voar… Não obstante, podemos falar agora, de forma mais relaxada, off record…
Relógio – Desculpe, mas não tinha uma reunião marcada para agora, em Portugal?
DF – Sim, mas não se preocupe, porque lá no meu país nós próprios criamos o nosso horário. E aquilo a que o senhor chama de pontualidade, nós chamamos de impossibilidade. O único horário com que nos preocupamos é com o horário de saída.
André Pereira
Diário de Fictícias – Bom dia, Senhor Doutor, como está?
Desemprego – Ora muito bom dia. Pode-me trazer uma torrada e um galão, se faz favor?
DF – Não sei se me está a reconhecer, eu sou um jornal, não trabalho neste café. Aliás, desde que o senhor cá entrou, ninguém trabalha cá.
Desemprego – Epá, que chatice… Estava mesmo a precisar de um bom pequeno-almoço. Há uns anitos que não como nada… Aliás, não faço nada há muito tempo, para onde quer que vá encontro tudo fechado. Viajo apenas de país em país, visitando muitas cidades e diferentes tipos de pessoas.
DF – Conhece muitos países, portanto. Como veio parar a Portugal?
Desemprego – Não foi difícil. No roteiro turístico que me deram na agência de viagens, Portugal é o país mais procurado pelos meus compatriotas. Não só pelo bom clima económico, como também pela excelente organização a nível social.
DF – Sim, são características do nosso país que atraem muitos turistas.
Desemprego – Acredito, mas eu não estou em Portugal a passar férias, não sou um turista neste país. Aliás, estou mesmo a pensar comprar casa e investir em diversos sectores.
DF – Pode ser mais específico?
Desemprego – Sabe, não tenho interesse em nenhuma área específica, o mercado define onde e quando eu devo intervir. O sector público tem sido o meu preferido e, durante uns tempos, continuará a ser.
DF – Porquê a sua insistência no sector público e não no privado?
Desemprego – Não sou eu que escolho onde trabalhar, mas sim o Governo de cada país. Mas estou a gostar muito de trabalhar na função pública, tudo é muito organizado e a aplicação e eficiência são extremas. No que respeita ao sector privado, parece-me que as decisões estão a ser tomadas correctamente.
DF – Ultimamente, muitas são as pessoas que vêm para a rua manifestar-se contra si e contra o Governo. Perante isso, que análise faz?
Desemprego – Eu não sei por que razão as pessoas não gostam de mim… Sou essencial para o bom funcionamento de qualquer sociedade. Por outro lado, grande parte das pessoas que está desempregada manifesta-se sem razão. O meu primo Trabalho tem uma área de influência razoável, mas poderia ser maior. As pessoas procuram mais o meu irmão Emprego do que o meu primo. Depois, cai-me tudo em cima.
DF – Hoje em dia, aparece em jornais, revistas, é tema de abertura do Telejornal, conversa de café, tudo gira à sua volta… É uma figura pública com um peso inquestionável na nossa sociedade…
Desemprego – Sim, eu reconheço isso. Estou “nas bocas do mundo” mas, infelizmente, pelas piores razões. Sou muito activo e de uma coisa posso ter a certeza, tenho sempre emprego garantido.
Desemprego – Já agora, podemos combinar um próximo encontro, para tomar um café ou ir ao cinema?
DF – (atrapalhado) Não, não… deixe estar. Ultimamente tenho tido muito trabalho e, apesar do esforço e sacrifício que isso implica, prefiro continuar. Obrigado pela entrevista, e veja lá se tira umas férias!
André Pereira